A costa portuguesa tem 943 km em Portugal continental, 667 km nos Açores, 250 km na Madeira onde incluem também as Ilhas Desertas, as Ilhas Selvagens e a Ilha de Porto Santo. Para além da costa, Portugal possuiu ainda uma das maiores zonas económicas exclusivas (ZEE) da Europa, cobrindo cerca de 1 683 000 km², sendo a 3ª maior ZEE da União Europeia e a 11ª do mundo.
Este facto é tão relevante porquanto, de acordo com os relatórios mais recentes da WHO (2014), a terceira causa de morte em jovens e crianças (<15 anos) é o afogamento. Em 2013, foram registadas cerca de 372.000 pessoas vítimas de afogamento no mundo, das quais mais de 142.219 foram crianças e jovens com idade inferior a 15 anos. Na Europa os dados são igualmente inquietantes, com mais de 5.000 crianças que anualmente são vítimas de afogamento (WHO, 2014). Portugal é inclusive um dos países que a European Child Safety Alliance (2009) aponta como prioritário na implementação de medidas preventivas.
Em Portugal o número de casos fatais é preocupante. Segundo o Observatório do Afogamento (FEPONS, 2018), em 2017, tivemos mais de 112 afogamentos em diferentes planos de água: mar (36); rios (20); piscinas domésticas (5); tanques (3); poço (10); piscinas de hotel (2); praia marítima (9); barragens (9), tanto com crianças como com adultos. Estes dados não abrangem os casos não declarados, nem os registos que resultam em hospitalização, apresentando normalmente prognósticos reservados.
Esta descrição, só por si, justificaria a existência de um programa educativo estratégico com prioridade política de competência aquática (para além da sua relevância social, de saúde, económica, cultural e desportiva) no desenvolvimento integral da criança e medida preventiva direta do afogamento. Na essência, uma criança pode aprender a nadar, mas numa situação complexa pode afogar-se por não saber responder à situação problema por uma razão fundamental: falta de competência aquática.
Esta simples mudança de paradigma educativo (do ensino da natação para o da competência aquática) possibilitaria a extensão do programa, independentemente da inexistência de piscinas, possibilitando a sua operacionalização, em conformidade sazonal, em qualquer espaço aquático, sendo ele piscina ou lago, mar, rio, sem a dependência por vezes, limitadora de recursos financeiros para alugar espaços e pagar deslocações.
Alguns até poderão advogar que o sistema educativo português apresenta orientações curriculares para o ensino da natação em todos os ciclos de ensino. Ilusões que a prática desmente. O ensino da natação no atual sistema educativo é apresentada como alternativa (embora assinalada como prioritária no programa curricular do 1º ciclo do ensino básico), isto porque apesar das normas previstas nos Despachos n.º 12591/2006 e n.º 9265-B/2013, que preveem a lecionação de atividades físicas desportivas (facultativas) enquanto parte da oferta de atividades extracurriculares (AEC’s), reconhece-se nos últimos relatórios (DGEE, 2013) que a natação “raramente ou nunca” é considerada, apesar de sugerida pelos encarregados de educação e apontada pelas crianças como atividade desportiva preferencial.
A única estrutura que tem atenuado esta situação é o Desporto Escolar, com orientações específicas para o desenvolvimento de programas de atividade, dinamizando esta atividade em algumas, poucas, escolas, com um número reduzido de alunos. Na maioria dos Países Europeus, é através das escolas e do desporto escolar que se massifica a prática da natação e os números são avassaladores.
Todo e qualquer programa de ensino da natação no 1º ciclo do ensino básico deveria estar centrado na competência aquática, enquanto sistema dinâmico, complexo e dependente das relações que o aluno estabelece com o contexto aquático envolvente, com importantes implicações no domínio da capacidade de percecionar riscos e perigos, na prevenção do afogamento – nadar no mar, no rio, numa piscina ou com roupa pressupõe condicionalismos diferentes - e por inerência com níveis de proficiência motora aquática distintos.
Em 2007 foi apresentado o manual técnico de apoio às atividades de enriquecimento curricular para alunos do 1º CEB, contendo as orientações programáticas das AEC para a atividade física e desportiva, como resposta ao disposto no Despacho nº 12591/2006 (DR nº 115, de 16 de junho).
Uma análise do manual dá uma ideia, bem fundamentada, de como se deveriam desenvolver as atividades físicas e desportivas. Foi, no entanto, esquecido um pormenor: a estrutura edificada para colocar em prática esta proposta não estava preparada para tal. Assim, têm vindo a ser dispersados recursos em atividades com carácter lúdico, com pouco impacto na mudança da literacia e hábitos motores das crianças que continuam, na generalidade, com repercussões graves na qualidade de vida.
Urge a implementação em Portugal no 1º ciclo do ensino básico de um programa de competência aquática que só será eficaz se: (1) deixar de ter carácter facultativo e passar a ter um caráter obrigatório, inserido nos conteúdos das expressões físicas e motoras do 1º ciclo; (2) a supervisão pedagógica ser operacionalizada pelo grupo de Educação Física de cada agrupamento de escolas; (3) a implementação dos projetos pressupuser a organização local com agrupamentos de escolas, autarquias, clubes, associações e técnicos disponíveis os técnicos e creditados com título profissional estejam sob a supervisão do referido grupo disciplinar; (4) que haja um processo de avaliação concreto ao programa; (5) haja um processo de formação técnica contínua; (6) haja avaliação externa ao modelo. Este será o primeiro passo. Mudar o paradigma e assumir politicamente a aposta.
Artigo publicado em A BOLA, Espaço Universidade a 27 de junho de 2018